sexta-feira, setembro 12, 2008

O ingénuo padre Vieira e os «branqueadores»...

CONTO MODERNO
Era um transmontano típico: forte, entroncado, apreciador de bom vinho e de bom presunto. O padre Vieira (nome fictício) tinha uma grande devoção pelos santos. Fazia livrinhos a torto e a direito. Cumulava-os de virtudes até raiar o inverosímil. Tinha a devoção e o afã de uma formiga laboriosa a captar cereal para a celeiro, nessa tarefa de acarretar virtudes. Com a sua voz frágil, a parecer voz de donzela, muito serviçal e venerador, ele captava facilmente a simpatia geral.

Fazia frequentes viagens à Terra Santa e era angariador, hábil angariador de clientes, para agências de viagens. Era frequente vê-lo e ouvi-lo na homilia a publicitar mais uma viagem.

Era muito amigo dos Epaminondas (nome fictício), comerciantes na Venezuela. Tecia-lhes as maiores virtudes. Já fora à Venezuela bastas vezes e dizia maravilhas. A família Epaminondas era muito devota. Mas também muito generosa. Ofertara um órgão, um sino, paramentos novos, arranjara a sacristia, contribuira para o salão, enfim, uns mecenas na vera acepção do termo.

O padre Vieira não era parco em elogios, quer no púlpito, quer no boletim paroquial. E carregava na dose da bajulação até atingir o limiar do lambebotismo!
Naquela aldeia transmontana tudo corria às mil maravilhas até que...
A bomba rebentou. Pedro Epaminondas fora «agasalhado» pela PJ. Foram detectadas numas latas que ostentavam o rótudo de pêssegos em calda, grandes quantidades de cocaína. Enfim, algumas latas traziam pêssegos de facto, mas a grande maioria não, era apenas cocaína. Vinham da Colômbia e passavam pela Venezuela com destino a Portugal.
A excessiva generosidade dos Epaminondas dera o alerta. Algo não batia certo. Um pequeno mini-mercado em Caracas não podia ser a fonte geradora de uma fortuna colossal...

O padre Vieira, quase lacrimejante, mal queria acreditar. Fez como S. Tomé. Foi à PJ para ver a realidade concreta. Lá, disseram-lhe que os BMW's e grande parte da fortuna eram fruto do tráfico de droga. E lá estavam as latas de pêssego cheias de coca a testemunhar a «pessegada»...
Parecia-lhe impossível. Gente tão religiosa, tão devota...

__Já ouviu falar em «branqueadores«?__ perguntou ao padre Vieira um agente da PJ.
__É aquilo que usa a Fátima Lopes, da SIC , para que os dentes brilhem ainda mais? __ soltou, ingénuo e meio aparvalhado, o simplório padre Vieira.
__Não, nada disso. Estou a falar em sentido metafórico...

E lá foi explicando que os traficantes usam certas fachadas para branquear a sua actvidade delituosa: uns usam a Igreja, outros o futebol, outros a política, enfim, há quem use tudo para ter mais impacto...

O padre Vieira ficou abismado! foi como se tivesse perdido a «virgindade»... Os Epaminondas, tão bons, tão crentes no Senhor, tão católicos de comunhão e de primeiro lugar nas filas da frente, na missa... Como era possível?!

Contudo, agora olhava com outros olhos a vida. E o próprio presidente da Câmara, Dr Boanerges (nome fictício) lhe parecia estranho. A sua permanente disponibilidade para com as coisas do culto, as procissões, as festas, contrastava flagrantemente com a sua antipatia para com ela (Igreja) antes de ser presidente. Nem casar pela Igreja quis, sempre se declarara comunista ferrenho nos tempos estudantis, sempre olhara com maus olhos aquilo que ele então designava por «padralhada» e afins... Essa excessiva disponibilidade cheirava-lhe a «branqueamento». Sim, ele talvez quisesse com essa colagem excessiva, limpar a imagem beliscada pelos escândalos financeiros que iam sendo divulgados
em segredo, aqui e ali, nos cafés, nos blogues, nas tertúlias...

Enfim, o padre Vieira amadureceu e ganhou outra visão: mais prudente, mais profunda, mais sã. Ganhou outra dimensão, sem dúvidas.

Ao perder a tal virgindade, ele ganhou alforria, emancipou-se, tornou-se mais eloquente nas homilias, abandonou aquele estilo sabujo e alienado e ficou mais bem aceite por todos. Até a voz, outrora fina e efeminada, se tornou mais vigorosa. Aquilo dos branqueadores não lhe saía da cabeça!...

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