terça-feira, agosto 19, 2008

«Ele gosta de dar peidos com o cu dos outros!»

A expressão tão pitoresca foi-me dita por um conterrâneo seu. De pele tisnada pela sol, de rugas vincadas ostentando já muita experiência da vida e quiçá alguma frustração. No bar, com um cigarro ao canto da boca , lá foi desfiando o rosário contra o «reizinho» como fazia questão de lhe chamar...

Passada mais de uma década eu recordo a expressão daquele homem e a frase que jamais esqueci. Procuro nos escaninhos da memória as peças para compor o puzzle e elas encaixam perfeitamente bem; aquele dito tão característico da sabedoria popular foi paradigmático. Ele sintetiza toda uma filosofia, todo um modus vivendi...

O homem do leme era um perito na arte de roubar o erário público (ele usava o termo «trasfegar»...) e colocar nas algibeiras privadas. Sobretudo em dois jornais, ele injectava milhões a pretexto de fazerem publicidade à terra. Contudo essa publicidade não era mais do que propaganda ao dador, ao magnânimo «trasfegador» de bens públicos para bolsos privados. Pipas de massa eram assim trasfegadas perante o olhar incrédulo dos pobres contribuintes, cada vez mais sobrecarregados.

Jornais e empresas de construção e obras públicas eram os destinatários dessas autênticas delapidações do erário público. Os beneficiários colocavam o seu benemérito no pedestal mais alto: ele era um santo, um taumaturgo, um milagreiro...

É óbvio que essa magnanimidade era feita à custa de toda a gente, dos impostos. Ele aparecia como Midas, mas os seus méritos eram os de um pilha-galinhas engravatado e bem falante. Gostava de cantarolar em público. Era uma figura grotesca, pantomineira, cheia de banhas inestéticas e usava uma linguagem pirosa, truculenta, sem qualquer resquício de elevação moral. Mas os padres achavam piada e desculpavam esses excessos por causa da generosidade do «magnânimo». A fazer lembrar o fechar de olhos da Igreja Católica ao rei-Magnânimo (D. João V) que sob o pretexto de ser muito generoso para com a dita cuja, se servia dos mosteiros como prostíbulos, usando freiras para saciar a sua incontinência sexual! Consta que a madre Paula teve um filho seu que viria até a ser inquisidor mor do reino. Ou seja: a magnanimidade a servir de capa ao deboche, à violação de freiras; este magnânimo não era tão excerável como o tal rei que se serviu das riquezas da escravatura e da exploração de recursos do Brasil para uma ostentação faustosa. Mas aproximava-se. Era um excêntrico, à sua maneira...

Não obstante a forma descarada como tudo era feito, as autoridades metiam o rabinho estre as pernas pois a legislação era propícia ao regabofe. «Ele gosta de dar peidos com o cu dos outros», no dizer do seu conterrâneo, mas não é só ele, infelizmente...

Enfim, uma casta de novos-ricos, incultos e devassos foi emergindo ladina perante a pasmaceira geral. Era um jardim das delícias para os corruptos, os traficantes de influências, enfim, um oásis...
Até que a classe média, até aí muito pouco interventiva, se começou a interrogar: será que nós poderemos viver melhor se aqueles plutocratas começarem a pagar os seus impostos, será que a riqueza que existe e está tão mal distribuída, poderá dar-nos maior satisfação? Como fazer para alterar este status-quo?


Havia riqueza, de facto, mas tão mal distribuída que todos eram empregados ou dependentes de meia dúzia de novos ricos apóstolos fanáticos do tal que «dava peidos com o cu dos outros»...

Começaram a tomar consciência do verdadeiro problema, uniram-se, criaram um sentimento de solidariedade que revolucionou o viver colectivo. Foi afastado o «que dava peidos com o cu dos outros» e a vida começou a ser mais digna de ser vivida para a grande maioria, para a classe média.

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