terça-feira, outubro 23, 2007

Não, não é conto... foi real!




__Então D. Nazaré, que tem o telefone?! Faz uns ruídos esquisitos, uns clics fora do normal!..
__Tenha cuidado alferes, pois pode estar sob escuta!
Foi assim esta a primeira vez que dei conta da existência das escutas. Era um período de grave suspeição. Corria o ano de 1971 e eu estava colocado em Angola. Costumava frequentar a casa do professor Santos Júnior, o criador da reserva ornitológica de Mindelo. Era na rua Cidade de Lisboa, um sítio sossegado e muito acolhedor. Ele, então colocado nos chamados Estudos Gerais
em Luanda, era simpático e gostava de receber pessoas da Metrópole. Nesse dia ele só bebia líquidos, "faço-o uma vez por mês, para ver se chego aos cem anos", gracejava com certa dose de ironia. Presentes alguns professores universitários amigos, bebendo cerveja.
__Eu não acredito nesta raça negra, a maioria são uns broncos, uns imbecis, não são capazes de se salientar em nada...__ falava assim um sujeito alto e forte que era natural da Guarda.
__Pois eu não sou tão radical__contrapuz eu__acredito que há negros inteligentes e capazes de ombrear com os brancos em muitos domínios, só que nalgumas circunstâncias eles não têm condições favoráveis para desabrochar... como agora, aqui em Angola.
__Você é poeta, tem desculpas, é um lírico!__ sorriu o outro com malícia no olhar__está provado cientificamente que a raça negra é inferior...
A conversa, amena e cordial, ia sendo salpicada, aqui e ali, por intervenções do anfitrião, prof. Santos Júnior... Ele próprio, embora de forma delicada, também afinava pelo mesmo diapasão...
O tema passou a ser a guerra e o futuro da Província Ultramarina, Angola...
Eu, embora de forma prudente, disse:
__Julgo que é preciso ter muito cuidado, pode passar-se aqui o mesmo que no Congo... pode demorar dez, vinte anos, sei lá...
__Não seja pessimista, homem__ desancou de imediato o tal sujeito da Guarda...__além de poeta você está num estado de espírito pouco propício a enfrentar uma guerra...
__Não, não é pessimismo, é realismo, há que dar ouvidos à História!... __repliquei eu.
__Você parece o Manuel Alegre, esse que foi para a Argélia arrotar postas de pescada, dizendo mal de Portugal e dos portugueses... Esse cobarde queria fazer aqui uma guerra civil!...
__Julgo que talvez não fosse essa a ideia, talvez dar uma independência como aconteceu no Brasil, para dar voz a todos os angolanos independentemente da cor da pele...
__Você está pior do que eu pensava! você defende esse canalha?! Você "ouve vozes" seja da História, seja do "vento", quem "ouve vozes" não está bem fino... deve tratar-se...
A conversa aparentemente simples e cordial azedou. Vim a saber mais tarde (por intermédio do professor) que ele tinha um irmão na Pide/DGS...
A minha correspondência particular começou a vir violada e nem esforço faziam para eu não perceber...
Não sei porque carga de água esta conversa chegou a um oficial superior que me interpelou sobre ela e sobre as tais "vozes"... Fiquei siderado! Até me mandaram a um psiquiatra!... e fui, mas não consegui convencê-lo totalmente. Ele era ainda mais reaccionário do que o tal professor da Guarda!
Passados uns tempos houve uma forte explosão em Tancos e essa explosão foi atribuída a um amigo meu, de nome Ângelo, que mais tarde vim a saber pertencer à LUAR (Acção Revolucionária Armada). A princípio defendi o tal Ângelo quando surgiu a notícia, pois não acreditava ser possível ele fazer tal coisa...
Enfim, nunca me passou pela cabeça que aquela conversa havida na casa do professor Santos Júnior desencadeasse escutas telefónicas, mas de facto assim foi...
O Big Brother sempre em acção!...

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