Ana Plácido (ou melhor, a talentosa actriz Catarina Furtado) foi o sonho (felizmente concretizado) de Camilo Castelo Branco. Naquela noite, na Estalagem das Pulgas, ele sonhou com ela...
Após a refeição frugal (Camilo comeu só uma sopa de nabiça e um pão com chouriço assado, enquanto que o padre Cícero devorou uma excelente truta acompanhada de grelos) os dois comensais tomaram o café e beberem um digestivo, ficando a tagarelar até tarde.
O padre desafiava-o a regressar ao «bom caminho», para seu próprio bem, dizia ele. Era um conselheiro persistente:
__ Abandona essas maledicências quase sacrílegas, tu para seres escritor de escol não precisas de te rebaixar nessas baixezas mundanas, só falas de sexo, de adultérios, de traições, de excessos libidinosos. Fala de santos, conta a vida dos nossos santos e santas, dos padres dignos e empenhados, que os há também, não fales só nas safadezas de alguns. Há trigo e joio em todo o lado. Fala mais no trigo. Faz crónicas de Bem Dizer, faz panegíricos aos reis, elogia o clero e a burguesia católica e temente a Deus. Tu tens talento, aplica-o no louvor a Deus. Louva os homens de bem, os governantes, os deputados... podes ter uma carreira de jornalista de sucesso!
__Padre, não me sinto um lambebotas cretino. Sei bem que vou ter dificuldades em editar. Andam para aí uns ricaços arvorados em poetas que passam a vida a incensar o seu próprio ego e o dos que lhes aparam os golpes. Eu sei que é preferível passar fome, sofrer humilhações, do que vergar aos poderosos, bajular esses cretinos que têm o poder na mão e julgam-se czares, donos da verdade, senhores absolutos da vida dos mais humildes. Eu não me vendo ao status quo dominante: ao sistema!
O padre bem tentou levá-lo para o reino dos acomodados, dos instalados na vida, mas não conseguiu. Camilo era teso e não vergava. Iria ridicularizar a Igreja, o Papa, as instituições monárquicas, os comerciantes abastados, mas ignorantes e prepotentes.
Pagou caro o desaforo, o afrontamento às instituições, o amor à liberdade de esrever.
Aquela noite sonhou muito. Debaixo de uns lençóis pouco higiénicos e de umas mantas toscas sonhou com a sua amada, sonhou que tinha fugido com ela para o Brasil e estava em pleno Amazonas, desfrutando a liberdade... O amor quando é autêntico é tão lindo, tem asas... não precisa de dinheiro para satisfazer as necessidades materiais mais comezinhas. Era este o amor de Camilo por Ana Plácido!
__Minha querida Ana, prefiro viver a pão e água do que perder-te para sempre naquela selva que é o Porto. Um amor e uma cabana, bem humilde, com janela para o céu...chega.
Ela, no barco improvisado, mostrava os dentes alvos e o sorriso descontraído de quem saboreava o prazer da liberdade. O cabelo negro esvoaçando por força da brisa morna da tarde, ela sussurava ao seu ouvido:
__Estar aqui no Amazonas é como atingir o céu. A minha vida era um inferno. Aquele seboso do meu marido fazia tudo o que podia para me humilhar aos olhos da sociedade. Eu era como se fosse uma peça de mobiliário. Talvez mais mal tratada do que algumas que lá existiam...
Dito isto o barco fez um solavanco e com medo que Ana caísse ao rio, Camilo levantou-se e foi em seu socorro! A brisa era intensa, um ventinho forte fazia a ondulação mais vigorosa. Até as roupas leves de Ana pareciam também esvoaçar deixando vislumbrar o recorte de um seio generoso e opulento. Camilo, com a ânsia de a proteger, caíu ao rio!...
Então, repentinamente, sentiu umas picadas fortes e insuportáveis nas pernas. Eram as terríveis piranhas!
Ana abeirou-se para o socorrer mas caíu também ao Amazonas! dulpa tragédia! era o fim dos seus sonhos!
Camilo deu um grito que ecoou pela Estalagem das Pulgas acordando toda a Junqueira! Caíu abaixo da cama de ferro que lhe serviu de cenário para aquela noite tão doce e com fim tão desagradável!
Mas do mal o menos... não, não estava no Amazonas! Estava na Estalagem das Pulgas, e havia lá muitas pulgas... a sensação de estar a ser comido por piranhas, afinal resultou da abundância de pulgas ... e nada mais do que isso!...Ana Plácido a esta hora no Porto, estava a bom recato...
3 comentários:
A Lua sangra no celeste
Aprisionada está a razão
Olhos sem a virtude da luz
Uma fria pedra no coração
Um banco de jardim
É leito do rei da sarjeta
Almofada de encardido cartão
Acomoda esta carcaça inquieta
Boa semana
Abraço
Meu caro Profeta, bonito poema...
Uma boa semana para ti!
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