E se olhar no horizonte, verá um mar de prosperidade para todos nós. A crise será a oportunidade que nos irá abrir as portas do sucesso. O nosso sucesso, claro.
É nestas alturas que se vêem os vencedores, que emergem os triunfadores, que alcançam a glória os políticos com pragmatismo...A grande maioria, estagna numa apagada e vil tristeza, como diria o Poeta. Vítimas, eternas vítimas, que aplaudem, apenas sabem aplaudir, sem pensar...
Haverá sempre alguém que resista, que crie sentimentos confusos na populaça, poderá até dizer que não temos escrúpulos, que temos ganância, que não respeitamos os legalismos vigentes, mas a esses, que sempre exitiram e sempre existirão, o senhor, como timoneiro da nossa estratégia comum, só dirá: «não comento, não posso nem devo ser comentador, deixo isso aos profissionais da intriga e da maledicência!»
Um horizonte de prosperidade se abrirá para todos nós, e quando já forem visíveis a olho nu as fissuras no barco nacional, então o senhor dirá mais ou menos isto: «eu sempre alertei para os perigos, eu sempre disse que isto ia mal, muito mal, eu sempre dei avisos à navegação e ninguém ligou...»
Ninguém se lembrará do seu discurso anterior. O povo não tem memória, é burro, continuará a bater-lhe palmas desenfreadamente, desde que o senhor apareça com aquele sorriso esfíngico nas TV's, sorrindo, sorrindo, sorrindo estupidamente, e, perante perguntas inteligentes e porventura incómodas, dirá apenas: «Não comento, não devo nem posso comentar, deixo isso aos profissionais da maledicência...»
Quando vierem dizer que a banca está ao serviço de alguns banqueiros sem escrúpulos, que as parcerias público-privadas são uma fonte de prejuízo para o Estado e uma galinha de ovos de ouro para os privados, limite-se a dizer:«o mercado é que dita as leis, o mercado sabe o que faz, o mercado é o nosso deus...»
Então sim, o nosso horizonte comum terá o êxito que todos nós esperávamos. Se alguém for detido ou alvo de suspeição pública pertinente e agressiva, dirá apenas:»não comento, não devo comentar, até prova em contrário os visados são idóneos, impolutos, acima de quaisquer suspeitas... e leve até onde lhe for possível esse discurso».
Se algum atrevido vier dizer na praça pública que o país se vai afundando por nossa causa, desvie as atenções, fale na falta de competitividade, no laxismo, no fatalismo, no pessimismo do povo português como causa-mor da crise; isso servirá de cortina de fumo, de biombo para o nosso modus actuandi... o povo, burro e inculto como continua a ser, acreditará em si, continuará a bater-lhe imensas palmas, e, desde que você apareça mais vezes que os outros nas TV's e na comunicação social, tudo continuará na mesma, na estabilidade por nós tão desejada...
No seu léxico quotidiano use e abuse de palavras com efeito sedativo, como tranquilidade, estabilidade, paz social, ausência de crispação, elas terão o condão de levar à resignação, ao fatalismo, e amortecerão a ânsia de revolta que vai nascer na mente dos mais esclarecidos. A esses, aponte-lhes o dedo, dizendo que provocam crispação, anarquia, que são os causadores da instabilidade, os profetas da desgraça, os negativistas compulsivos, os doentes...não se iniba até de lhes chamar esquizofrénicos ou outros adjectivos mais agressivos, para que as massas, a populaça, fique mais tranquila com esse diagnóstico aviltante; assim poderemos levar avante o nosso projecto de salvação comum e ocultação dos nossos patrimónios comuns à custa de off-shores, de transferências para paraísos fiscais adequados...
E procure aparecer sempre nas TV's__ em todas elas__ sorridente e bem disposto, como se a crise nada tivesse a ver consigo, como se a crise fosse culpa dos madraços populares que não são competitivos, não são capazes de tirarem o país do atoleiro em que está por culpa exclusiva deles. Atire o odioso da crise para cima das classes laboriosas, isso servirá de cortina para ocultar a realidade nua e crua... perante a maioria da população, a minoria que desencadeou este vendaval, ficará protegida... o seu discurso servirá de pára-raios para todos nós...
Então, poderá passar à História como um homem bom, de honra, amigo dos seus amigos, um semi-deus, enquanto que os seus detractores, os que ainda têm os olhos abertos e procuram esclarecer a populaça sobre os veros responsáveis da crise, esses passarão a ser os anti-sociais, os estigmatizados, os ostracizados, os maus da fita...
Sempre que algum repórter mais atrevido, ou seja, não alinhado pelo nosso diapasão, o interrogar sobre a sua participação nesta estratégia, diga apenas: «não comento,. não devo comentar, deixo issso aos opinion makers de ocasião e aos intriguistas de pacotilha...»
O povo, esse, continuará estender-lhe uma passadeira vermelha, a bater-lhe imensas palmas, estupida e desenfreadamente como só o povo sabe fazer, a gritar bem alto o seu nome como salvador... mal sabendo que, de facto, aqui entre nós, a alcunha que já lhe pusemos é precisamente essa: o «Salvador de Belém!», o nosso salvador....claro.
Cai o pano, e o público, de pé, aplaude o treinador... e o timoneiro... delirantemente, como só o povo sabe fazer...de forma cega, ululante, acéfala!
No topo do palco, aparece um cartaz enorme, com letras escorrendo sangue: «A BEM DA NAÇÃO!!"»
2 comentários:
Caro amigo;
Depois de ler este texto, só me ocorre uma palavra para o classificar; BRILHANTE.
Houvesse mais vozes, lúcidas e corajosas, como a sua, no palco da comunicação social e, talvez, este país não fosse tão "burro e cego" e no mínimo deixasse de bater palmas aos seus próprios carrascos.
BEM HAJA.
Um forte abraço.
Mreu caro:
Brilhante é o sol, e mesmo esse, quando em demasia também faz mal!
lool :))
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